sábado, 30 de junho de 2012

CLOCKWORK ANGELS (2012)

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“Clockwork Angels (2012)”  [****]

O Rush retorna ao melhor da sua forma (da fase clássica que vai de 2112 até Moving Pictures), em um lançamento que mistura um cenário steampunk (estética que serve de inspiração para o primeiro álbum inteiramente conceitual da banda), temas universais, composições de consistente excelência individual (e de inegável somatório coesivo) e uma cristalina confiança em todo o processo da produção, algo que só chega com a definitiva maturidade. 

A estética steampunk é perfeita para os trabalhos. Em um mundo onde o passado e o futuro parecem coexistir, fica impossível ignorar o presente, o “melhor dos tempos”. A jornada do protagonista de Clockwork Angels é uma fascinante metáfora para a vida de qualquer indivíduo, desde o momento em que se percebe capaz de pensar o mundo e (talvez) modificá-lo, até o ponto em que se nota (talvez) não ser capaz de fazê-lo por muito mais tempo. Os poderes de Peart, enquanto escritor, nunca estiveram tão evidentes (especialmente na segunda metade do álbum), com rigoroso senso estrutural e não se rendendo as maravilhas do fantasioso mundo subjacente. Aqui, O Professor simplesmente dá aula de ficção especulativa.

Nada mais justo que uma imensa influência sessentista em todas as composições. Berço histórico do álbum conceitual de rock e do rock progressivo e, mais do que tudo, da adolescência do trio canadense. Isso é algo que sempre esteve presente na música do Rush, mas que aqui comparece com uma renovada urgência e uma palpável pureza, transcendendo tudo que a banda fez anteriormente nesse sentido.

Com a chegada da definitiva maturidade da banda, a preocupação composicional caiu fortemente sobre o essencial: ênfase em grooves de bateria e de baixo, solos de guitarra mais naturais, vocais que procuram fugir das convenções típicas do rock, passagens instrumentais que soam como improvisações e mesmo (surpreendentemente inspirados e não pomposos) arranjos de cordas e de piano que de fato contribuem para a desejada organicidade. Sendo impossível não mencionar, nisso tudo, o estupendo produtor Nick Raskulinecz, o principal responsável por fazer o álbum fluir tão bem (com aparente inesgotável energia) e dar a necessária autossuficiência a cada canção.

Faixa a Faixa

Caravan (09/10) Começo da viagem do protagonista, com a atmosfera de válvulas de alívio de vapor funcionando como perfeita metáfora para a excitação a flor da pele típica da juventude.

“In a world where I feel so small
I can’t stop thinking big”

A sua seção instrumental parece uma continuação da vibração de Malignant Narcissism ( do álbum anterior ), com uma atitude extremamente funkeada, capaz de entortar qualquer pescoço.

Brought Up To Believe I (08/10) Introdução da principal preocupação existencial do protagonista, descrita com ironia e sarcasmo típicos dos mais jovens (fãs de rock?). Apresentação de mais um personagem, O Relojoeiro, o máximo regente daquela terra (e o foco do conflito heroico). Monstruoso riff de introdução e um pesado riff de verso. O primeiro refrão com melodia sessentista do álbum e um belíssimo pós-refrão em que essa melodia se desenvolve organicamente até um natural clímax (algo que irá se repetir em outras faixas).

“Until our final breath
The joy and pain that we receive
Must be what we deserve
I was brought up to believe”

Clockwork Angels (10/10) Faixa mais progressiva do álbum (e a mais progressiva da banda em mais de 30 anos). Uma abertura (rock operística) clássica que sugere os temas que serão tocados (com espetacular sucesso cinemático) durante toda a duração: verso com a guitarra (bastante) limpa e cantado no contratempo (em grande momento vocal de Lee), capturando o deslumbramento do protagonista em meio a Praça Cronos, ponte dinâmica e bastante sincopada, emulando o frenesi da grande cidade capital da história e um refrão em que os vocais e os tambores se combinam para evocar o clima comunal e a prece destinada aos titulares Anjos Mecânicos.

“Clockwork angels, spread their arms and sing
Synchronized and graceful, they move like living things
Goddesses of Light, of Sea and Sky and Land
Clockwork angels, the people raise their hands... As if to fly”

Após o belo solo de Lifeson, ocorre uma inesperada seção vanguardista (blues!?), cuja aspereza contrasta absurdamente com a polidez do restante da faixa, especialmente quando a sua última linha é repetida no retorno de tal passagem, o que sublinha a dúvida do protagonista (e a acidez de Peart).

“ 'Lean not upon your own understanding'
Ignorance is well and truly blessed
Trust in perfect love, and perfect planning
Everything will turn out for the best”

The Anarchist (9/10) Uma curiosa estrutura, onde todo o arranjo é passado uma vez inteira sem voz (ou algo assim) e recomeça com a guitarra solitária. Incrível levada de Peart sobre os tons (é a levada da ponte, mas é variadamente tocada também como introdução), uma inspirada harmonia para o refrão que simplesmente grita “RUSH!” (mas que soa fresca e dinâmica), outro pós-refrão interessante que conduz a um espetacular solo de Lifeson com influência oriental, do qual retornam gritando (confiantemente) ainda mais “RUSH!”. A faixa é cantada sob o ponto de vista de outro personagem, O Anarquista, mas os temas permanecem absurdamente universais.

“The lenses inside of me that paint the world black
The pools of poison, the scarlet mist, that spill over into rage
The things I’ve always been denied
An early promise that somehow died
A missing part of me that grows around me like a cage”

Carnies (7/10) A mais fraca do álbum. Com bons momentos, mas que não se faz maior do que a soma das suas partes. As coisas realmente ruins são a emasculada parte de guitarra do refrão (algo que chega a ser incompreensível depois do belo riff de abertura e que simplesmente mata o refrão que surge após o clímax ao final da ponte) e a tradicional levada em paradiddle de Peart para a parte seguinte (que soa surrada e destoa do frescor que ele traz para o restante do material). Entretanto, o maior problema aqui é mesmo a fragilidade do incidente narrado (o protagonista evita um ataque a bomba do anarquista, mas, vítima das circunstâncias, tem que deixar a cidade as pressas, com medo da multidão furiosa) e a letra que não parece ir além disso, seja lá o modo que se olhe para ela.

Halo Effect (7/10) A simplicidade dessa balada recupera o fluxo das composições e sugere um possível início de amadurecimento por parte do protagonista, reconhecendo o dilema de se projetar um ser idealizado sobre um de carne e osso (o que não se resume a relacionamentos românticos). A posição da canção no álbum também parece adequada dentro da história, soando de modo natural ele refletir sobre o seu mal sucedido caso com uma acrobata, com quem trabalhara no parque de diversões referido na canção anterior, durante o seu forçado exílio.

“What did I see?
Fool that I was
A goddess, with wings on her heels
All my illusions
Projected on her
The ideal, that I wanted to see

Seven Cities Of Gold (9/10) A atmosfera da titular cidade perdida é muito melhor capturada do que foi a do titular parque de diversões de Carnies. Algo muito simples, mas extremamente bem feito. Tal atmosfera de improviso flui fantasticamente, até a última microfonia da guitarra de Lifeson, sem nunca quebrar o seu exótico encanto. Obviamente não devemos tomar a busca pela mítica cidade pelo seu valor de face, com o protagonista completamente perdido fisicamente no deserto. A imagem da imensidão gelada sugere metaforicamente um estado depressivo e mesmo suicida.

The nights grow longer, the farther I go
Wake to aching cold, and a deep Sahara of snow”
That gleam in the distance could be heaven’s gate
A long- awaited treasure at the end of my cruel fate”

The Wreckers (10/10) A melhor canção de rock em recente memória. A captura da essência da própria beleza. Talvez a melhor performance vocal da carreira de Lee. Dominada pela simplicidade, não existe sequer ponte, pois eles tinham a absoluta confiança que a mera sugestão do refrão já arrepiaria até a alma. A seção pós-refrão é cinematicamente indescritível, orgástica até. Faltou somente um solo final de Lifeson, que esperamos ver e ouvir na versão ao vivo da faixa. Nosso herói conseguiu retornar do deserto gelado somente para ser ainda mais maltratado por Peart, tornando-se o único sobrevivente (de toda a tripulação do navio em que conseguira carona) do ataque dos titulares saqueadores (que atraíram sua presa simulando um porto seguro em meio a tempestade). É clara a metáfora, mais uma vez sobre percepção (com elementos de medo e esperança se conectando a fé do protagonista), mas é impossível não sublinhar o fato que somente ele sobreviveu (Selena e Jackie).

All I know is that sometimes you have to be wary
Of a miracle too good to be true
All I know is that sometimes the truth is contrary
Everything in life you thought you knew
All I know is that sometimes you have to be wary
’Cause sometimes the target is you
All I know is that memory can be too much to carry
Striking down like a bolt from the blue

Headlong Flight (10/10) Mais importante do que sobreviver é querer continuar a viver. Justapondo citações musicais da clássica Bastille Day com o protagonista revivendo as memórias de sua vida ( algo inspirado dentro da história por um certo “Alquimista” chamado “Friedrich Gruber” que dizia: “Eu queria poder fazer tudo isto de novo.” ), temos um fascinante uso de metalinguagem e o momento mais emocionante do álbum. A faixa é simplesmente maravilhosa, com o hipnótico riff de baixo de Lee, a selvageria minimalista de Peart e o eletrizante solo (com direito a Wah-Wah) de Lifeson.

I learned to fight and learned to love and learned to steal
I wish that I could live it all again”

Brought Up To Believe II (10/10) Talvez a faixa mais vanguardista da história da banda, em outro grande momento vocal de Lee. Mesmo rejeitando a fé advinda do que lhe foi ensinado nos seus anos de infância, o protagonista confessa a si mesmo que vê nela a base para a sua remanescente crença no ato de dar e receber amor.

I still choose to live
And give, even while I grieve
Though the balance tilts against me
I was brought up to believe”

Wish Them Well (10/10) Musicalmente na linha de The Wreckers, com rearranjo de partes como visto em The Anarchist. Extrema confiança composicional, excelente seção instrumental e mais um belo pós-refrão, como viemos a esperar nesta segunda metade do álbum. Nosso herói decide que para continuar com a sua vida ele deve deixar completamente para trás as pessoas que o prejudicaram de algum modo e seguir em frente, simplesmente desejando boa sorte e partindo (e nada mais). Apesar do ar sombrio da faixa anterior, Peart dá um final feliz ao seu protagonista (Carrie e Olivia).

Thank your stars you’re not that way
Turn your back and walk away
Don’t even pause and ask them why
Turn around and say goodbye”

The Garden (10/10) Uma das melhores músicas da carreira da banda, exalando atmosfera rock progressiva setentista, porém com tocante simplicidade. Talvez a melhor letra de Peart, brincando com os múltiplos níveis de entendimento já estabelecidos (e com o próprio tempo) de maneira inspirada, resumindo a real grandeza de “todos os possíveis mundos”. Se esta for mesmo a despedida da banda em estúdio, fica difícil imaginar algo mais adequado. E de volta ao início na fazenda... Finding My Way To The Garden.

The measure of a life is a measure of love and respect
só hard to earn, so easily burned
In the fullness of time
A garden to nurture and protect”
 
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